domingo, 2 de janeiro de 2011

Revista Isto É

Projeto para a América Latina

Mais do que laços econômicos estreitos, Lula quer trabalhar com líderes regionais para conseguir criar uma identidade comum aos povos do continente

Claudio Dantas Sequeira

TABULEIRO
Lula quer transformar a
região em um polo de poder
 
Em um planeta cada vez mais multipolar, a formação de blocos regionais tornou-se um arranjo natural para países que buscam um lugar de destaque no tabuleiro geopolítico. Mas obter o consenso entre nações com características, povos e interesses diferentes não é fácil. Há
25 anos, o Brasil lidera o processo de integração regional. Começou com o Mercosul, avançou para a União de Nações Sul-Americanas e ensaia sua expansão para toda a América Latina. Durante seus dois mandatos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva priorizou a consolidação desses processos, e agora, fora do governo, deverá ajudar Dilma Rousseff a avançar de maneira sólida para transformar a região num polo de poder mundial. O recado foi dado na sexta-feira 17, durante a cúpula do Mercosul em Foz do Iguaçu, última participação internacional de Lula como presidente. “Eu certamente em outro momento estarei reunido com vocês”, disse o brasileiro.

“Provocaremos uma revolução na mentalidade e percepção dos cidadãos.”
img2.jpg
BASE
Lula vai usar a fundação que criará
para sugerir ideias aos países do bloco
 

Unificação de culturas

Lula seguirá lutando pela integração latino-americana através da fundação que planeja criar, após deixar o Palácio do Planalto. “O presidente quer ajudar na integração da América Latina e na cooperação com a África”, diz o chefe de gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho. Lula tem dito a interlocutores que sua concepção de um bloco regional passa pela construção de uma identidade do Mercosul, “de baixo para cima”. Isso se dará não só a partir da boa relação com os demais chefes de Estado latino-americanos, mas principalmente por meio de medidas sociais, que afetem o dia a dia da população. Ou seja, não basta seguir o protocolo diplomático ou dar lastro institucional ao bloco. É preciso interferir na vida do povo e fazer com que ele se sinta sul-americano, latino-americano. “Desde o início do governo o Lula bateu na tecla da autoestima dos brasileiros, que andava baixa. Agora, ele defenderá a identidade comum que une nossos povos, a ideia de que todos somos irmãos”, explica um assessor. Espera-se assim que vizinhos argentinos, paraguaios e uruguaios não se sintam menores que os brasileiros, ou nos vejam como rivais, mas no mesmo nível.
img1.jpg
DIFERENÇAS
Lula é bem-aceito por esquerdistas,
como Fidel, e por líderes mais à direita

É a partir desse pensamento que continuarão a surgir medidas como a de criar uma placa única para os veículos dos países-membros, aprovada em Foz do Iguaçu. A expectativa é de que em dez anos todos os carros do Mercosul tenham a mesma placa e possam transitar livremente pelas fronteiras, como já ocorre com os cidadãos comuns. “Em um primeiro momento será elaborada uma lista de todos os veículos cadastrados em cada país para depois criar uma lista comum. No final de todo o processo, todos usarão a mesma placa”, afirma o chanceler Celso Amorim. Além de permitir a livre circulação dos automóveis por todo o Mercosul, a medida permitirá um maior controle dos veículos que cruzam as fronteiras e reduzirá a incidência de roubos.

Essas iniciativas compreendem o que o governo Lula passou a de chamar Mercosul Social, um bloco mais político e menos econômico. Atendeu a esses interesses a criação do Parlamento do Mercosul, para o qual o Brasil deve eleger representantes em 2012,
e o chamado Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem), cujas contribuições são utilizadas na recuperação de estradas
e construção de linhas de transmissão nos sócios menores do bloco.

E contra as críticas de que ações como essas não passam de maquiagem, considerando os problemas tarifários e comerciais que abalam o Mercosul, Lula entregou a Dilma um cronograma de ações para a implantação da união aduaneira – cujo esboço já foi chancelado pelos ministros das Relações Exteriores do bloco. “Queremos que a América Latina seja um polo de poder nesse mundo multipolar”, explica o assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia. Ele foi incumbido da tarefa de preparar um plano de longo prazo para a consolidação e convergência do Mercosul com a Unasul (União Sul-Americana de Nações) e a Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos).

O ingresso da Venezuela no Mercosul, uma iniciativa do próprio Lula, é parte desse processo de convergência. “É importante que um país como a Venezuela faça parte do bloco para reduzir as assimetrias. É um país em desenvolvimento e também um mercado consumidor importante para Brasil e Argentina”, explica o ex-presidente do Conselho de Representantes Permanentes do Mercosul, Chacho Alvarez, que foi vice-presidente no governo de Fernando de la Rúa.
img.jpg
APOIO
Cristina Kirchner, da Argentina, está
disposta a ajudar Lula em seu projeto de união regional

Mais política e menos economia


Nas últimas cúpulas desses blocos, aliás, os líderes políticos dos países vizinhos demonstraram boa vontade de apoiar a liderança brasileira, algo que não acontecia no passado. “Pela primeira vez temos um país que decidiu sair à arena internacional e esse é um dos grandes méritos e um de nossos desafios. O Brasil tem que ser consciente de sua responsabilidade e nós temos que apoiá-lo”, disse o presidente uruguaio, José Pepe Mujica. Segundo ele, Lula, mesmo fora da Presidência, ainda terá “muitas cartas a jogar”, tanto na integração latino-americana como na projeção internacional do bloco. “Sua experiência na inclusão social de milhões de brasileiros deve ser usada em toda a região.” O uruguaio está pensando no potencial consumidor dos 600 milhões de latino-americanos. Uma imensa população que desfruta de uma situação particular no planeta. A América Latina é um continente pacífico, tem uma das maiores reservas energéticas do mundo, um imenso potencial de produção de alimentos e uma biodiversidade extraordinária. Como bem disse a presidente argentina, Cristina Kirchner, é preciso ter inteligência para tirar partido dessas virtudes. “Não podemos cair na armadilha que nos imobiliza há 200 anos e inverter a lógica da divisão. É ‘unir para reinar’ e não mais o contrário.” E ninguém melhor que Lula para negociar
o consenso tão necessário.