quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Mercosul ganha Secretaria da Participação Social


Mercosul ganha Secretaria da Participação Social


A criação da Secretaria de Participação Social inaugura um novo capítulo na relação entre Estado e Sociedade no processo de construção do Mercosul. Antiga demanda dos movimentos sociais, a Secretaria contará com recursos financeiros para apoiar a participação de representantes da sociedade civil nas reuniões oficiais do bloco e apoiar a organização das futuras edições da Cúpula Social do Mercosul. O artigo é de Renato Martins.

O presidente Lula antecipou o anúncio da criação da Secretaria de Participação Social do Mercosul no ato de encerramento da X Cúpula Social do Mercosul, realizada nos dias 14 a 16 de dezembro, em Foz do Iguaçu - evento que antecedeu a realização da XL Cúpula de Presidentes dos Estados Partes do Mercosul. Também estavam presentes José Mujica, do Uruguai e Fernando Lugo, do Paraguai, além dos presidentes da Guiana e do Suriname, e representantes da Argentina e da Colômbia.

Cerca de 900 representantes de organizações sociais, redes e plataformas regionais e movimentos populares participaram da Cúpula Social, organizada pela Secretaria-Geral da Presidência da República do Brasil e pelo Ministério das Relações Exteriores.

A criação da Secretaria de Participação Social inaugura um novo capítulo na relação entre Estado e Sociedade no processo de construção do Mercosul. Antiga demanda dos movimentos sociais, a Secretaria contará com recursos financeiros para apoiar a participação de representantes da sociedade civil nas reuniões oficiais do bloco e apoiar a organização das futuras edições da Cúpula Social do Mercosul.

Criado em 1991 como um acordo fundamentalmente comercial, o Mercosul tem avançado na integração das políticas sociais, cujo adensamento guarda estreita relação com a ampliação da participação social verificada nos últimos cinco anos. No Brasil, foi criado, em outubro de 2008, o Conselho Brasileiro do Mercosul Social e Participativo, iniciativa coordenada pela Secretaria-Geral da Presidência da República e pelo Ministério das Relações Exteriores. O Conselho reúne-se quatro vezes ao ano e conta com representantes de centrais sindicais e trabalhadores rurais, organizações de estudantes, mulheres, juventude, educação, cultura, direitos humanos, direitos sexuais, cooperativas, economia solidária, imigrantes, meio-ambiente, negros entre outras. O Conselho garante o acesso às informações sobre as negociações em curso e contribui para a superação do déficit de participação que dificulta o avanço da integração regional.

As Cúpulas Sociais são igualmente fatores de democratização da integração. Iniciadas em 2006 elas se tornaram um evento regular da agenda oficial do bloco, e têm ocorrido sempre que se reúnem as Cúpulas Presidenciais. As Cúpulas constituem espaços de diálogo entre governos e organizações da sociedade civil e fazem parte da nova institucionalidade do Mercosul. Elas contribuem para a ampliação da esfera pública regional e para a incorporação das demandas geradas pelos movimentos sociais na defesa de direitos e de políticas públicas regionais.

A X Cúpula Social tratou de temas diversos como democratização da comunicação, povos guarani, imigração, ensino superior, desenvolvimento sustentável, entre outros. Da conferência de abertura, coordenada pelo reitor da Universidade Federal da Integração Latino-americana, professor Hélgio Trindade - sobre o tema Democracia, Desenvolvimento e Integração - participaram Marilena Chauí, da Universidade de São Paulo, Aldo Ferrer, da Universidade de Buenos Aires, Gerardo Caetano, da Universidade da República do Uruguai, e Emir Sader, da Universidade Federal Fluminense.

Outra decisão de grande transcendência anunciada em Foz do Iguaçu pelos presidentes dos Estados Partes foi a aprovação do Plano Estratégico de Ação Social do Mercosul. O PEAS, como é chamado, visa harmonizar políticas sociais entre os países do bloco e promover a integração das mesmas. O Plano incorpora recomendações emanadas das Cúpulas Sociais. Seus dez eixos de atuação estabelecem: 1) Erradicar a fome, a pobreza e combater as desigualdades sociais; 2) Garantir os direitos humanos, a assistência humanitária e a igualdade étnica e de gênero; 3) Universalizar a saúde pública; 4) Universalizar a educação e erradicar o analfabetismo; 5) Valorizar e promover a diversidade cultural; 6) Garantir a inclusão produtiva; 7) Assegurar o acesso ao trabalho decente e aos direitos previdenciários; 8) Promover a sustentabilidade ambiental; 9) Assegurar o diálogo social; 10) Estabelecer mecanismos de cooperação regional para a implementação e financiamento de políticas sociais.

Os presidentes aprovaram declaração especial sobre o Plano na qual afirmam que: “os objetivos ambiciosos contidos no PEAS expressam o compromisso dos Estados Partes em avançar para além dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas”.

(*) Renato Martins é professor da Universidade Federal da Integração Latino-americana, chefe da assessoria internacional da Secretaria-Geral da Presidência da República.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Comunicação no MERCOSUL

Comunicação ganha documento na Cúpula Social do Mercosul

Integrantes de organizações da sociedade civil, reunidos na Comissão de Comunicação da X Cúpula Social do Mercosul, divulgaram documento defendendo que a comunicação deve ser reconhecida como um direito a ser exercido por e para todas as pessoas. "Entendemos necessária a implementação, por parte dos Estados, de políticas públicas, com participação cidadã, para garantir a todas e todos o exercício dos direitos à livre expressão, à informação e à comunicação", diz a declaração. Pelo Brasil participaram representantes da Altercom, do Intervozes, da Rádio de la Juventud e do Parlamento do Mercosul.
Declaração do grupo de Comunicação na Cúpula Social do Mercosul

Reunidos em Itaipú, Foz do Iguaçú, os integrantes de organizações da sociedade civil reunidos na Comissão de Comunicação dentro da X Cúpula Social do Mercosul, manifestam que:


Vivemos tempos de mudança na América Latina. Hoje, mais do que nunca, os grandes meios de difusão que são parte do poder econômico, convertem-se nos principais opositores a esas mudanças, exercendo um verdadeiro terrorismo midiático. Ao mesmo tempo, vemos com otimismo o fortalecimento e a articulação de iniciativas de comunicação transformadoras, populares, alternativas, comunitárias, educativas e outras. Esses meios disputam sentidos, questionam a hegemonia do pretenso discurso único e são expressão das diversidades de nosso continente.

Afirmamos que a Comunicação deve ser reconhecida como um Direito Humano a ser exercido por e para todas as pessoas. O Direito à Comunicação implica garantir diversidade e pluralidade. Não nos conformamos com as proclamações que reduzem a liberdade de expressão à liberdade de empresa. Não se trata somente do fato de que os Estados não censuram a imprensa. Entendemos necessária a implementação, por parte dos Estados, de políticas públicas, com participação cidadã, para garantir a todas e todos o exercício dos direitos à livre expressão, à informação e à comunicação. Dessa forma se possibilitará a expressão a povos e setores silenciados.

Entendemos que isso implica revisar e reformular os marcos regulatórios para assegurar uma comunicação democrática e horizontal. Isso implica, entre outras coisas, que a informação e a comunicação sejam consideradas um direito e não uma simples mercadoria; que se impeçam os monopólios e oligopólios na comunicação; que se assegure o livre acesso à informação pública; que se promovam e fortaleçam os meios do setor social, populares, comunitarios, educativos; que se reconheça e se facilite o direito dos povos originários a gestionar seus próprios meios preservando suas identidades: que se promova a formação de novos comunicadores/as que expressem a identidade de nossas comunidades; que se estimule e facilite a criação ou fortalecimento de redes de comunicação regionais públicas e de gestão de organizações sociais; que se impulsionem e se desenvolvam meios públicos com participação cidadã; que se assegure o acesso e utilização universal dos beneficios das tecnologias da Informação e da Comunicação, garantindo o acesso universal à banda larga para nossos povos.

Nós, dos movimentos sociais, reconhecemos e valorizamos os meios de comunicação próprios, comunitários e populares, comprometendo os maiores esforços em potencializar e articular seu trabalho para contar a história desde o olhar de nossos povos e disputar os sentidos com o discurso do poder. Isso supõe não só mais meios, mas também meios mais fortes, com novas estéticas e articulados em rede. Por isso, estes meios devem ser não só permitidos, mas também fomentados e apoiados pelos Estados. Neste sentido, rechaçamos a criminalização que se exerce atualmente contra meios comunitarios, especialmente no Paraguai e no Brasil.

Apreciamos que o novo cenário continental abra oportunidades e, ao mesmo tempo, desafios para contribuir para a integração de nossos povos, promovendo a solidariedade, facilitando o diálogo intercultural, integrando a diversidade de vozes e dando visibilidade aos povos originários e afrodescendentes, a diversidade sexual, as populações imigrantes, as pessoas com necesidades especiais, mulheres, crianças e jovens, para construir em conjunto “outra América possível”.

Propomos às chancelarias de nossos países que sejam constituídos Conselhos Consultivos da Sociedade Civil, onde ainda não existem, para tornar possível a participação das organizações da sociedade civil no proceso de integração regional. Especificamente, solicitamos que se efetive a participação da sociedade civil na Reunião Especializada de Comunicação Social.

Solicitamos que os estados desenvolvam políticas públicas para meios de comunicação em regiões de fronteira que tendam a favorecer conteúdos em defesa da integração com respeito à diversidade, com participação das populações envolvidas e atendendo sua vivência cotidiana.

Neste sentido, apontamos como exemplo a integração já exercida entre meios de comunicação da sociedade civil do Brasil e da Argentina e do Paraguai e Argentina a partir de iniciativas surgidas nas Cúpulas de Salvador (Brasil) e da Ilha do Cerrito (Argentina). Entendemos necessária a plena participação da sociedade civil na Reunião Especializada de Comunicação Social (RECS) tanto a nível nacional como regional.

Propomos aos países membros a adoção de medidas que garantam às pessoas com necesidades especiais: a) acesso aos meios de comunicação televisivos mediante a implementação de legendas, áudio-descrição e Língua dos Sinais nos programas; b) acesso aos jornais e revistas digitais e a toda informação institucional mediante o desenvolvimento de páginas Web acessíveis levando em conta as recomendações de nível internacional.

Vemos de forma positiva a incorporação nesta instância de pequenos e médios empresarios da comunicação identificados com as bandeiras das lutas dos movimentos sociais de nossos países. Por último, reiteramos o chamado a nossos presidentes para definir e implementar políticas concretas e imediatas para Democratizar a Comunicação com a ativa participação das organizações sociais.

Foz do Iguaçu, 15 de dezembro de 2010.

Pelo Brasil:

João Paulo Mehl – Intervozes
Jessica Rodrigues – Radio de la Juventud
Marco Piva – Altercom
Rafael Reis – Parlamento do Mercosul

Pelo Uruguai:

Sabrina Crovetto – Mercociudades
Alvaro Queiruga – Ovejas Negras
Soledad Fontela – Red Especial Uruguaya
Humberto De Marco – Red Especial Uruguaya
Alberto Esteves – CEDECOOP
Marianella Custodio – Federación de Estudiante Universitarios

Pelo Paraguai:

Santiago Ortiz – Radio Fe y Alegria
Atanasio Galeano – Voces de Paraguay
Lorena Escobar – Voces de Paraguay

Pela Argentina:

Carlos Borona – Cancillería
Hugo Pan – FM La Nueva
Pedro Lanteri – Radio Madres de Plaza de Mayo
José Luis Moyano – Radio El Libertador

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Texto do Sociólogo Manuel Castells

Quem tem medo do Wikileaks?
“Uma organização de comunicação livre, assentada no trabalho voluntário de jornalistas e tecnólogos, como depositária e transmissora daqueles que querem revelar anonimamente os segredos de um mundo podre, enfrenta aqueles que não se envergonham das atrocidades que cometem, mas se alarmam com o fato de que suas maldades sejam conhecidas por aqueles que elegemos e pagamos”, escreve o sociólogo Manuel Castells em artigo para o jornal espanhol La Vanguardia.
Texto em português publicado originalmente no IHU-Online - Publicado no La Vanguardia em 30/10/2010

Tinha que acontecer. Há tempo os governos estão preocupados com sua perda de controle da informação no mundo da internet. Já estavam incomodados com a liberdade de imprensa. Mas haviam aprendido a conviver com os meios de comunicação tradicionais. Ao contrário, o ciberespaço, povoado de fontes autônomas de informação, é uma ameaça decisiva a essa capacidade de silenciar sobre a qual a dominação sempre se fundou. Se não sabemos o que está acontecendo, mesmo que teimamos, os governantes têm as mãos livres para roubar e anistiar-se mutuamente, como na França ou na Itália, ou para massacrar milhares de civis e dar livre curso à tortura, como fizeram os Estados Unidos no Iraque ou no Afeganistão.

Os ataques contra o Wikileaks não questionam sua veracidade, mas criticam o fato de sua divulgação com o pretexto de que colocam em perigo a segurança das tropas e cidadãos. Por isso o alarma das elites políticas e midiáticas diante da publicação de centenas de milhares de documentos originais incriminatórios para os poderes fáticos nos Estados Unidos e em muitos outros países por parte do Wikileaks. Trata-se de um meio de comunicação pela internet, criado em 2007, publicado pela fundação sem fins lucrativos registrada legalmente na Alemanha, mas que opera a partir da Suécia. Conta com cinco empregados permanentes, cerca de 800 colaboradores ocasionais e centenas de voluntários distribuídos por todo o mundo: jornalistas, informáticos, engenheiros e advogados, muitos advogados para preparar sua defesa contra o que sabiam que lhes aconteceria.

Seu orçamento anual é de cerca de 300 milhões de euros, fruto de doações, cada vez mais confidenciais, mesmo que algumas sejam de fontes como a Associated Press. Foi iniciado por parte de dissidentes chineses com apoios em empresas de internet de Taiwan, mas pouco a pouco recebeu o impulso de ativistas de internet e defensores da comunicação livre unidos em uma mesma causa global: obter e divulgar a informação mais secreta que governos, corporações e, às vezes, meios de comunicação ocultam dos cidadãos. Recebem a maior parte da informação pela internet, mediante o uso de mensagens encriptadas com uma avançadíssima tecnologia de encriptação cujo uso é facilitado àqueles que querem enviar a informação seguindo seus conselhos, ou seja, desde cibercafés ou pontos quentes de Wi-Fi, o mais longe possível de seus lugares habituais. Aconselham não escrever a nenhum endereço que tenha a palavra wiki, mas utilizar outras que disponibilizam regularmente (tal como http://destiny.mooo.com). Apesar do assédio que receberam desde a sua origem, foram denunciando corrupção, abusos, tortura e matanças em todo o mundo, desde o presidente do Quênia até a lavagem de dinheiro na Suíça ou as atrocidades nas guerras dos Estados Unidos.

Receberam numerosos prêmios internacionais de reconhecimento pelo seu trabalho, incluindo os do The Economist e da Anistia Internacional. É precisamente esse crescente prestígio de profissionalismo que preocupa nas alturas. Porque a linha de defesa contra as webs autônomas na internet é negar-lhes credibilidade. Mas os 70.000 documentos publicados em julho sobre a guerra do Afeganistão ou os 400.000 sobre o Iraque divulgados agora, são documentos originais, a maioria procedentes de soldados norte-americanos ou de relatórios militares confidenciais. Em alguns casos, filtrados por soldados e agentes de segurança norte-americanos, três dos quais estão presos. O Wikileaks tem um sistema de verificação que inclui o envio de repórteres seus ao Iraque, onde entrevistam sobreviventes e consultam arquivos.

Essa é a tática midiática mais antiga: para que se esqueçam da mensagem: atacar o mensageiro. De fato, os ataques contra o Wikileaks não questionam sua veracidade, mas criticam o fato de sua divulgação, sob o pretexto de que colocam em perigo a segurança das tropas e de cidadãos. A resposta do Wikileaks: os nomes e outros sinais de identificação são apagados e são divulgados documentos sobre fatos passados, de modo que é improvável que possam colocar em perigo operações atuais. Mesmo assim, Hillary Clinton condenou a publicação sem comentar a ocultação de milhares de mortos civis e as práticas de tortura revelados pelos documentos. Nick Clegg, o vice-primeiro-ministro britânico, ao menos censurou o método, mas pediu uma investigação sobre os fatos.

Mas o mais extraordinário é que alguns meios de comunicação estão colaborando com o ataque que os serviços de inteligência lançaram contra Julian Assange, diretor do Wikileaks. Um comentário editorial da Fox News chega inclusive a cogitar o seu assassinato. E mesmo sem ir tão longe, John Burns, no The New York Times, procura mesclar tudo num nevoeiro sobre o personagem de Assange. É irônico que isso seja feito por este jornalista, bom colega de Judy Miller, a repórter do The Times que informou, consciente de que era mentira, a descoberta de armas de destruição em massa (veja-se o filme A zona verde).

É o Partido Pirata da Suécia que está protegendo o Wikileaks, disponibilizando-lhe o seu servidor central fechado em um refúgio subterrâneo à prova de qualquer interferência. Essa é a tática midiática mais antiga: para que se esqueçam da mensagem, atacar o mensageiro. Nixon fez isso em 1971 com Daniel Ellsberg, que publicou os famosos papéis do Pentágono que expuseram os crimes no Vietnã e mudaram a opinião pública sobre a guerra. Por isso Ellsberg aparece em entrevistas coletivas ao lado de Assange.

Personagem de novela, o australiano Assange passou boa parte de seus 39 anos mudando de lugar desde criança e, usando seus dotes matemáticos, fazendo ativismo hacker para causas políticas e de denúncia. Agora está mais do que nunca na semiclandestinidade, movendo-se de um país para outro, vivendo em aeroportos e evitando países onde se procuram pretextos para prendê-lo. Por isso, foi aberto na Suécia, onde se encontra mais livre, um processo contra ele por violação, que logo foi negado pela juíza (releiam o começo do romance de Stieg Larsson e verão uma estranha coincidência). É o Partido Pirata da Suécia (10% dos votos nas eleições europeias) que está protegendo o Wikileaks, deixando seu servido central trancado em um refúgio subterrâneo à prova de qualquer interferência.

O drama apenas começou. Uma organização de comunicação livre, assentada no trabalho voluntário de jornalistas e tecnólogos, como depositária e transmissora daqueles que querem revelar anonimamente os segredos de um mundo podre, enfrenta aqueles que não se envergonham das atrocidades que cometem, mas se alarmam com o fato de que suas maldades sejam conhecidas por aqueles que elegemos e pagamos. Continuará.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

América Latina e as políticas de combate à desigualdade

Documento da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) apresenta o resgate da massa dos excluídos do nosso subcontinente como eixo principal das políticas não apenas distributivas, mas econômicas e sociais no sentido mais amplo. De certo modo, a desigualdade passa a ser vista como uma oportunidade de expansão econômica interna, um horizonte positivo de crescimento, não mais baseado em consumo de luxo de minorias, mas em consumo e inclusão produtiva dos setores mais pobres da população. 



A CEPAL publicou um documento de primeira importância, “La Hora de la Igualdad”. Apresenta o resgate da massa dos excluídos do nosso subcontinente como eixo principal das políticas não apenas distributivas, mas econômicas e sociais no sentido mais amplo. De certa forma, a nossa principal herança maldita, a desigualdade, passa a ser vista como oportunidade de expansão econômica interna, um horizonte positivo de crescimento, não mais baseado em consumo de luxo de minorias, mas em consumo e inclusão produtiva de quem precisa. É a dimensão latinoamericana do que o Banco Mundial chama de população “sem acesso aos benefícios da globalização”, cerca de 4 bilhões de pessoas no planeta, quase dois terços do total. Numa terminologia mais prosaica, são os pobres.

O denominador comum da transformação desta década é a ampliação do consumo de massa. A visão enfrenta fortes resistências, com todos os preconceitos herdados, mas no conjunto os efeitos multiplicadores estão se verificando, e o processo foi se ampliando com a geração de governantes progressistas eleitos na região. A visão de bom senso é de que o principal desafio, a exclusão econômica e social de mais da metade da população, pode constituir uma oportunidade, um novo horizonte de expansão no mercado interno, favorecendo assim não só os pobres, mas o conjunto do aparelho produtivo. A crescente pressão da base da pirâmide social por melhores condições de vida, articulada com a determinação dos governos de promover as mudanças, gerou um círculo virtuoso em que o econômico, o social e o ambiental encontraram o seu campo comum, e no contexto tão importante de uma governança democrática.

Os avanços sociais sempre foram apresentados como custos, que onerariam os setores produtivos. As políticas foram tradicionalmente baseadas na visão de que a ampliação da competitividade da empresa passa pela redução dos seus custos. Isto tem duas vertentes. Enquanto a redução dos custos pela racionalização do uso dos insumos, redução da pegada ecológica e aproveitamento das novas tecnologias produtivas e organizacionais é essencial, pelo avanço de produtividade que permite, a redução de custos pelo lado da mão de obra reduz o mercado consumidor no seu conjunto, e tende a ter o efeito inverso. Ao reduzir o mercado consumidor, limita a escala de produção, e mantém a economia na chamada “base estreita”, de produzir pouco, para poucos, e com preços elevados, que é a tradição latinoamericana. E poupa as empresas mais atrasadas de investirem na modernização.

A crise financeira mundial deixou as coisas mais claras. A evolução da América Latina frente à crise se caracteriza pelo fato de que no momento da eclosão dos problemas nos Estados Unidos, a região já vinha tomando medidas redistributivas no sentido amplo, ficando assim parcialmente preparada. No pior da crise, intensificou as medidas, o que facilitou a transição. No entanto, o problema principal não é a crise de 2008. Por mais grave que esta seja, o principal é que a América Latina era e continua sendo a região mais desigual do planeta, com problemas estruturais absolutamente obscenos em termos de riqueza ostensiva e perdulária frente à miséria do grosso da população e as correspondentes perdas de produtividade.

Deste ponto de vista, a crise financeira de certa forma representou uma oportunidade, ao tornar mais evidente a necessidade de uma ampla base de consumo popular. Apraoveitarm-se assim as políticas anti-cíclicas características de uma conjuntura determinada, para estabilizar políticas estruturais, visões de Estado. Paradoxalmente, é graças à crise que um conjunto de setores fechados a visões progressistas passou a ver de outra maneira o papel do Estado, as políticas distributivas, as políticas sociais em geral. Com o colapso dos mercados mundiais, foi importante para uma série de setores de atividade mais vinculados à exportação poderem se reconverter para o mercado interno que se expandia apesar da crise. Com o travamento dos créditos dos bancos comerciais, outros setores viram com bons olhos a existência de bancos públicos que não só mantiveram como expandiram as linhas de crédito. Uma visão mais ampla da política econômica se generalizou, abrindo mais espaço para medidas de longo prazo.

O estudo da Cepal sistematiza de maneira muito útil este novo enfoque, apontando seis grandes pilares:

1) Uma política macroeconômica para um desenvolvimento inclusivo: a região pode crescer mais e melhor. Não só é necessário atingir um maior dinamismo econômico, mas também maiores níveis de inclusão e igualdade social, menor exposição aos impactos da volatilidade externa, mais investimento produtivo e mais geração de empregos de qualidade. O papel das políticas macroeconômicas é essencial.

2) Convergência produtiva com igualdade: as economias latino-americanas e caribenhas se caracterizam por uma notória heterogeneidade estrutural que em explica em grande medida a aguda desigualdade social da região. Esta heterogeneidade está dada pelas brechas internas e externas de produtividade. Para ajudar a preencher estas lacunas, a CEPAL propõe transformar a estrutura produtiva a partir de três eixos de políticas: o industrial, com ênfase na inovação; o tecnológico, centrado na criação e difusão de conhecimento; e o apoio às pequenas e médias empresas.

3) Convergência territorial: o território importa sim. As brechas sociais e de produtividade também tem sua expressão especial. Daí a urgência de criar políticas que abordem a heterogeneidade territorial no interior dos países. As transferências intergovernamentais são decisivas na correção das disparidades territoriais, assim como os fundos de coesão territorial.

4) Mais e melhor emprego: o emprego é a chave mestra para resolver a desigualdade. Para superar as lacunas na renda, no acesso à seguridade social e na estabilidade laboral – além do problema da discriminação que afeta mulheres, jovens e minorias étnicas – a CEPAL propõe um caminho centrado, entre outros temas, na construção de um pacto laboral que gere dinamismo econômico e proteja o trabalhador.

5) A superação das brechas sociais: o Estado tem um papel decisivo na reversão da desigualdade, o que implica um aumento sustentado do gasto social, avançar na institucionalidade social e na direção de sistemas de transferências de rendas para melhorar a distribuição em favor dos setores mais vulneráveis.

6) O pacto fiscal como chave no vínculo entre o Estado e a igualdade: é necessário dotar o Estado de maior capacidade para redistribuir recursos e promover a igualdade. Trata-se de um Estado de bem estar e não de um Estado subsidiário, que avance para uma estrutura tributária e um sistema de transferências que privilegie a solidariedade social. Com uma nova equação Estado-mercado-sociedade poderá se alcançar um desenvolvimento com empregos de qualidade, coesão social e sustentabilidade ambiental.

A formulação desta visão na América Latina, que sempre separou, em termos de análise, as políticas econômicas e as políticas sociais, é sumamente importante. Tanto no Brasil como em outros países, as políticas distributivas continuam a ser apresentadas pelas oligarquias como “assistencialismo”, e a fragilidade das políticas de prestação de serviços sociais como efeito natural da ineficiência do Estado. A dinâmica social como vetor de promoção das atividades econômicas no seu conjunto, nestas propostas da Cepal, constitui uma visão de bom senso. O desenvolvimento volta aqui a ser entendido como processo integrado, e a dimensão econômica se articula com as dimensões sociais e ambientais.

As políticas sociais passam assim a ser analisadas não apenas na sua eficiência específica, em termos de melhoria da saúde ou da promoção das pessoas, por exemplo, mas no seu impacto geral para as atividades econômicas. A concepção de que “a produção” geraria riqueza, enquanto o social constituiria gasto, é simplesmente errada. Consolida-se a visão do social como investimento. Segundo o relatório, “os recursos utilizados na gestão social, mais do que gasto, são investimento".

Em outra dimensão, o investimento social, ao tirar as pessoas da miséria, e integrá-las na dinâmica econômica mais ampla, permite ultrapassar gradualmente o eterno dualismo que trava o desenvolvimento da região: bens pobres para pobres, saúde pobre para pobres e assim por diante. É o que o relatório da Cepal chama da “hetorogeneidade estrutural” que precisa ser enfrentada para gerar a “convergência produtiva”.

"As transferências destinadas à exclusão social e ao desemprego, à habitação, à família e às crianças aumentam a eficácia macroeconômica na medida em que favorecem a participação da mulher, a inserção produtiva das pessoas excluídas e também o consumo provado. Isso coincide com uma das principais mensagens que esse trabalho quer transmitir, a saber, a necessidade de visualizar o gasto social em favor do bem estar a partir de uma perspectiva de investimento social que contribua para reduzir a heterogeneidade estrutural e avançar na direção de uma convergência produtiva" (243)

Neste subcontinente historicamente assolado por oligarquias retrógradas sustentadas por interesses transnacionais, onde sempre se promoveu o desenvolvimento excludente, onde a própria modernidade se apresenta como acesso de minorias a um luxo ostensivo, trata-se realmente de uma virada histórica. Não pelos resultados, que ainda são extremamente tímidos, dada a produndidade da desigualdade herdada, mas pela reorientação das políticas.

Bernardo Kliksberg, que prefacia a obra, também vê as novas políticas na sua dimensão transformadora mais ampla, envolvendo a própria ética dos processos econômicos. "Na América Latina, há hoje uma sede de ética. vastos setores concordam com a necessidade de superar a separação entre ética e economia que caracterizou as últimas décadas. Uma economia orientada pela ética não aparece como um simples sonho, mas sim como uma exigência histórica para superar o paradoxo da pobreza em meio à riqueza e construir um desenvolvimento pujante, sustentável e equitativo".

O documento da Cepal pode ser acessado na íntegra, sem custos, no link http://bit.ly/9Vpwt4 . Uma versão resumido em portugués, de 58 páginas, pode ser acessada em http://bit.ly/bqwYAh

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

O Brasil segundo informações do Wikileaks


O Brasil de Lula no WikiLeaks


Lula nunca foi mal visto pelos embaixadores – foram quatro durante seu governo –, embora a política externa fosse olhada com desconfiança. Mas, pessoalmente, ele foi descrito muitas vezes com surpresa, suas quebras de protocolo devidamente registradas e a sua equipe devidamente estudada.

Logo no primeiro contato, o senador Aloizio Mercadante foi descrito como “radical”, enquanto José Dirceu, que viria a ser ministro da Casa Civil, seria mais “discreto”. Já o ex-ministro da Economia, Antonio Palocci seria “uma voz para acalmar os mercados”.

Os telegramas também mostram que, se os embaixadores viam o Itamaraty como adversário, Lula reclamava do Departamento de Estado como um obstáculo para uma boa relação com o presidente Bush.

Primeiro contato

Na primeira reunião com oficiais americanos, no dia 21 e novembro de 2002, Lula, “animado, elegante e descansado”, teria dito logo de cara que queria ter uma boa relação com Bush: “Acho que dois políticos como nós vamos nos entender quando nos encontrarmos frente a frente”. Dois anos depois, ele voltaria a elogiar o presidente Bush, agradecendo “calorosamente” por sempre ter sido tratado com respeito e gentileza pelo americano.

Mas o telegrama sobre a primeira impressão americana, de novembro de 2002 relata tambem uma gafe presidencial, talvez a primeira. O presidente teria afirmado querer mudar a percepção que os oficiais brasileiros são “um bando de ladrões irresponsáveis” e de que “o Brasil é outra Colômbia”.

A frase teria sido proferida na reunião entre o que viria a ser o núcleo duro do governo com o subsecretário de estado americano Otto Reich – um encontro descrito como “caloroso e produtivo”.

Nele, Dirceu, Palocci e Mercadante defenderam a prioridade aos parceiros do Mercosur. Segundo o telegrama, Dirceu chegou a interromper Mercadante para dizer que as negociações bilaterias são importantes “mas teriam que ser feitas dentro dos compromissos regionais do Brasil”.

Reich ainda tentou tirar satisfação sobre a participação de Mercadante no Foro de São Paulo – uma coalizão de partidos de equerda latinoamericanos – irritado com o fato de que havia ali líderes das Farc e do governo cubano.

Mercadante respondeu que muitos dos participantes do Fórum são “esquerdistas antiquados” e que poderiam aprender muito com o PT, cujo foco seria “defender a democracia”. Foi a deixa para Reich falar de violações de direitos humanos em Cuba, ao que Dirceu rebateu. “Nós vamos simplesmente ter que concordar em discordar”.

No final, Reich é taxativo: “Nós não temos medo do PT e da sua agenda social”.

No telegrama enviado ao Departamento de Estado, ele descreveu os três políticos como tendo “personalidades complementares e contrastantes”.

“O radicalismo antigo de Mercadante não está muito longe da superfície. Ele fala para convencer mais do que para explicar, frequentemente apontando o dedo para seu interlocutor. Mesmo assim é cortês e claramente focado em projetos bilaterias específicos”.

“Dirceu é muito mais discreto. Nunca corrigiu Mercadante mas algumas vezes o interrompia para qualificar suas observações. Ele parece ser o ‘primeiro entre iguais’”.

“Palocci, cuja estrela ascendeu rapidamente nos últimos meses, é talvez o mais pragmático do grupo. Ele fala devagar e com calma – geralmente sobre temas econômicos – claramente consciente do efeito das suas palavras. É uma voz aparentemente designada para acalmar os mercados”.

Segundo mandato

Em outubro de 2006, o futuro embaixador Clifford Sobel e os conselheiros políticos da embaixada presenciaram outro momento histórico.

Era dia 30 de outubro, o dia seguinte à reeleição, e eles visitaram o Palácio do Planalto, onde detectaram um clima de “jubilante celebração”, segundo um telegrama secreto enviado às 17:51 horas do dia 1 de novembro.

“Uma fileira de VIPs fluíam pelo palácio para ter audiências com o presidente reeleito”, prossegue Sobel.

Os americanos encontraram o chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho “aliviado” e “nas alturas”. Carvalho afirmou a eles uma frase que seria um mantra nos encontros com a diplomacia americana: apesar de ter buscado ampliar as alianças no primeiro mandato, a prioridade seria relações com os parceiros tradicionais, como os EUA.

Mas o embaixador não deixou barato, reclamando que “certos” membros do governo falavam que o Brasil precisava “countrabalancear” o poder americano. Carvalho concordou enfaticamente, disse que não se falaria mais nisso – e ainda pediu a compreensão pela retórica usada durante a campanha eleitoral.

Sobel também encontrou com o general Jorge Armando Felix, ministro do Gabinete de Segurança Institucional e o ministro do Desenvolvimento e Indústria Luiz Furlan – ambos, na visão da diplomacia americana, aliados que sempre brigaram por mais proximidade com o país. Mas conclui seu telegrama com uma crítica ao Itamaraty, o que seria a sua marca à frente da embaixada.

“Nossos interlocutores do alto escalão estavam de muito bom humor ontem, com palavras gentis para todo o mundo, inclusive para os EUA. Mas sem grandes mudanças no alto escalão e na orientação do ministério das relações exteriores duvidamos sobre a viabilidade de uma mudança favorável aos EUA e ao mundo desenvolvido em vez da prioridade sul-sul do primeiro mandato de Lula”.

O Departamento de Estado, outro desafeto

Clifford Sobel se apresentou formalmente como embaixador no dia 7 de novembro de 2006. E já chegou reclamando. No telegrama enviado no dia seguinte, explicou que a cerimônia foi atrasada pela campanha eleitoral, sendo que ele estava no Brasil desde agosto. Mesmo assim, a reunião com Lula teria sido “positiva” e com uma “atmosfera calorosa”.

Lula conversou com Sobel e seus assessores junto com o chanceler Celso Amorim e o assessor especial Marco Aurélio Garcia. Defendeu uma parceria sobre etanol e ganhou como resposta um inusitado presente: uma foto autografada por Bush do encontro do G-8 ocorrido em São Petesburgo, na Rússia, em julho.

No final, Sobel voltou a mostrar desconfiança com as palavras doces do governo brasileiro: “nós vamos continuar esperando para ver, atentos para outros desenvolvimentos que podem indicar se essa ofensiva charmosa se traduz em uma mudança significativa na política externa”.

Como já demonstraram outros telegramas publicados pelo WikiLeaks, o embaixador – que jamais conseguiu dominar o português – a continuou esperando até o fim.

Embora os EUA continuem sendo um forte parceiro comercial e Sobel tenha chegado a comemorar em entrevista à revista Veja um estrondoso aumento dos investimentos brasileiros no país, a dinâmica do comércio exterior brasileiro mudou e a China chegou a substitui-lo como principal parceiro comercial em 2008.

No dia 27 de julho de 2009, Sobel se despediu do país. Na ocasião, ele enviou um colorido telegrama a Washington narrando o último encontro com Lula.

“Essa conversa final permitiu um insight singular sobre a complexidade e a tensão no pensamento de Lula sobre as relações exteriores. Caloroso, pessoal, e sedutor no começo e no final da reunião, ele fez um monólogo intenso e quase agressivo no meio da conversa”, diz.

Para Sobel, o fato de Lula ter reclamado das dificuldades com o Mercosul – em especial do presidente boliviano Evo Morales, que acusara Washington de tramar o golpe em Honduras – era uma boa nova. O embaixador via isso como um sinal de que Lula queria se aproximar dos EUA para solidificar seu papel no continente.

Nesse sentido, relatou ele, o presidente reclamou da proibição do governo americano à venda dos aviões super Tucanos à Venezuela.

“O Brasil precisa das ferramentas para poder lidar com seus vizinhos, disse Lula. Se a Bolívia que comprar Super Tucanos, Lula tem que poder vender. O Brasil não pode arcar com esse tipo de vexame ao não poder vender Super Tucanos à Venezuela”.

Para Sobel, “o Mercosul chegou aos seus limites como mecanismo de integração”. Ele escreveu que após a cúpula do Mercosul em julho, “a tensão era palpável” e Lula estaria “perturbado”.

“Ele acredita que os Estados Unidos ainda têm problemas significativos com sua imagem e relacionamento no hemisfério mas que o presidente Obama pode superar esses problemas”.

Lula também teria criticado a burocracia do governo americano, que não teria ajudado nas relações bilaterais – assim como Sobel tantas vezes criticou o Itamaraty.

Apesar de ter uma boa relação com Bush, Lula afirmou que “nunca conseguiu trazer o Departamento de Estado para essa relação”.

“O seu foco nos líderes Morales, Sarkozy, Obama e a sua visão negativa da burocracia são uma demonstração clara da importância que Lula dá às relações pessoais da conduta da política externa”, observa Sobel.

O embaixador de Obama

Somente em 9 de fevereiro de 2006 o atual embaixador, Thomas Shannon, se apresentou formalmente ao presidente Lula. Nesse encontro, Lula avisou que iria visitar o Irã em maio com o objetivo de “abaixar a temperatura” sobre a questão iraniana – uma versão muito diferente do que foi retratado pela imprensa.

Lula, “saudável depois de uma crise de hipertensão”, mais uma vez estendeu a reunião por muito mais tempo que o combinado, o que foi notado pelo americano. Shannon também relatou a empolgação com a figura de Barack Obama. “Ele vê o engajamento de Obama como crítico para uma nova relação de qualidade não só com o Brasil, ma com a América Latina como um todo”.

O terremoto do Haiti, ocorrido duas semanas antes, também dominou a pauta. “Lula, claramente engajado na questão o Haiti, reforçou a necessidade de colocar a ONU e o governo haitiano no comando dos esforços de reconstrução”.

O presidente teria lamentado que os países ricos usassem a corrupção do governo haitiano como argumento para não dar dinheiro diretamente a ele. Com as ONGs, a coisa seria tanto pior: “A maioria do dinheiro dado através de ONGs vão para pagar salários e despesas para estrangeiros ou funcionários que estão fora do Haiti”, teria dito o presidente brasileiro.

Entrevista do Presidente Rafael Corrêa

"Vamos rumo a uma globalização descontrolada''
Em entrevista ao jornal Página/12, o presidente equatoriano Rafael Correa manifesta preocupação sobre a espionagem e as operações políticas reveladas pelo Wikileaks. Também fala sobre a tentativa de golpe que sofreu e sobre o desenrolar da crise mundial. Para ele, a situação é grave pois não se atacou a raiz do problema, que é o descontrole absoluto dos mercados em geral e, em particular, dos mercados financeiros. "Isto é, vamos rumo a uma globalização, mas sem mecanismos de governança em nível mundial. É um absurdo ter um mercado mundial sem mecanismo de governança para esse mercado", denuncia.
A reportagem é de Santiago O’Donnell, publicada no jornal Página/12. Publicado originalmente em português no IHU-Online. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Sorridente e relaxado, Rafael Correa parece ter desfrutado seu dia em Buenos Aires, que começou cedo com um doutorado "honoris causa" na Universidade de Buenos Aires e continuou com um encontro com membros da comunidade do seu país, a inauguração de uma rua em Puerto Madero que leva o nome da heroína equatoriana Manuela Sáenz, a apresentação do seu livro "Ecuador: de Banana Republic a la No República", em que respondeu a perguntas do público, incluindo as de Federico Luppi, Piero, Osvaldo Bayer e do economista Mario Rappoport. Ao cair da noite, depois de uma coletiva de imprensa com a imprensa local e estrangeira, ele concedeu uma entrevista exclusiva ao jornal Página/12.

Eis a entrevista.

Qual sua opinião sobre os vazamentos do Wikileaks?

É algo terrível, muito grave. Traiu-se a confiança dos países amigos dos Estados Unidos. Vamos esperar um pouco mais. Pedimos relatórios de inteligência para ver até onde chega a gravidade do assunto e, em função disso, daremos as respostas pertinentes.

Vai mudar a maneira de fazer diplomacia?

Sem dúvida. Depois do que aconteceu, devo ser muito mais cuidadosa para que não nos espiem, para que não estejam nos grampeando, para que não influenciem em nossa política externa etc.

Dos documentos que puderam ser vistos até agora, qual é o que mais lhe preocupa?

Até agora, nada. Talvez a ingenuidade dos EUA de pensar que pode, por meio dessa querida amiga que é Cristina Fernández de Kirchner, pensar que podem influenciar para que o presidente Correa seja mais maduro, mais moderado, mais equilibrado em sua relação com a Colômbia. Isso revela o apoio incondicional que os EUA tiveram pela Colômbia, apesar de a Colômbia ter sido o agressor no bombardeio de Angostura. A ingenuidade de pensar que uma querida amiga como Cristina ia me influenciar, ia se prestar a isso, para tratar de resolver o problema com a Colômbia, e não resolvê-lo com base no litígio, mas sim por meio de concessões do Equador. Nós não temos nada a temer. Que tirem o que quiserem de informações sobre o Equador. Em todo o caso, o que nos interessa mais é o que tentaram fazer conosco. Insisto, estamos recompilando essa informação.

Chama-lhe a atenção que tenha havido tantos documentos sobre a Argentina?

Eu não tinha essa notícia, não posso opinar a respeito.

A abstenção do Equador e da Bolívia na votação da OEA pelo conflito entre a Nicarágua e a Costa Rica marca uma ruptura com a Alba?

Não, isso incomoda um pouco. Nunca se votou na OEA, sempre se decidiu por consenso, por isso decidimos pelo mal menor, que foi nos abster. Mas a Nicarágua e a Costa Rica são países próximos, muito queridos pelo Equador, e o que esperamos é que esse impasse seja resolvido o mais rápido possível.

Mudou alguma coisa com a crise ou o capitalismo se recompôs e é mais do mesmo?

O capitalismo se recompôs e há mais do mesmo. Sem dúvida, houve mudanças. Obama tomou muitas das mesmas medidas que o governo equatoriano havia tomado. Mas não se atacou a raiz do problema, que é o descontrole absoluto dos mercados em geral e, em particular, dos mercados financeiros. Isto é, vamos rumo a uma globalização, mas sem mecanismos de governança em nível mundial. Então, é um absurdo ter um mercado mundial sem mecanismo de governança para esse mercado. Vamos ser vítimas desse mercado, e é o que estamos vivendo, porque não se atacou a raiz do problema. Podem-se injetar bilhões de dólares no sistema, mas não vai se resolver o problema se as sociedades estão submetidas ao mercado, e não o mercado submetido às sociedades humanas.

O que mudou?

Muito pouco. Por exemplo, aqueles que viviam insultando o Estado tiveram que recorrer ao Estado para sair da crise. Mas, insisto, são reformas dentro do sistema. O sistema em si mesmo deve ser mudado em seus fundamentos.

Quais são seus objetivos para a Cúpula de Mar del Plata?

Tomara que consigamos acordos vinculantes, senão tudo fica em uma foto. Devemos conseguir uma cooperação mútua para melhorar indicadores qualitativos, não só os quantitativos da educação. Uma meta é conseguir currículos homogêneos para diversos países.

Quem está freando o Banco do Sul?

(Risos) Não posso dizer, mas mostra-se muita falta de vontade em alguns países.

Alguns dos mais poderosos?

(Ri outra vez) Mostra-se falta de vontade de alguns países.

Depois da refundação, como se faz para continuar mobilizando, para manter a militância ativa?

Isso não se faz com uma Constituição. Isso se faz com organização, e isso nos faltava, sempre dissemos isso. Evo (Morales) veio das organizações sociais, Hugo (Chávez), do movimento Quinta República, nossa situação foi quase espontânea. Fomos poder, fomos governo sem essa estrutura política. Temos um grande capital político, mas não o estruturamos, não o mobilizamos. Por isso, somos vítimas fáceis de minorias com grande capacidade de mobilização. Então, era um desafio, sabíamos disso desde o primeiro dia de governo, mas estávamos sobrepassados pelo trabalho de governar. Agora, felizmente, nesta segunda etapa de governo, o desafio era criar essa estrutura política, organizada, com capacidade de mobilização. Isso é precisamente o que começamos a fazer. No dia 14 de novembro, tivemos a primeira convenção nacional do nosso partido, Alianza PAIS. E estamos nisso. Ninguém vai parar a nossa revolução cidadã.

Depois da tentativa de golpe há dois meses, suponho que o senhor tem muito interesse em fortalecer as instituições do país.

Bom, isso é o que viemos fazendo fortemente. O que acontece é que este é um novo Estado, não em função das burguesias e das elites, essas elites que manejam os meios de comunicação que dizem que estamos desinstitucionalizando o país. O país estava desinstitucionalizado. Estamos institucionalizando-o, mas não em favor dessa gente. Quanto mais fortes forem as instituições, menos dependentes são das lideranças pessoais. Isso é o que todos desejamos, mas, enquanto isso, e em todos os países, as lideranças continuam sendo importantes.

O senhor tem uma relação difícil com os líderes da principal organização indígena.

É que existe uma direção indígena bastante intransigente com a qual é impossível falar. E não queremos falar com eles porque são desrespeitosos, sem seriedade. Você pode chegar aos acordos mais claros, firmá-los, e eles descem as escadas e já estão se contradizendo. Defendem interesses corporativos, o espaço que têm na educação bilíngue, cotas de poder, não o bem comum. Mas de nenhuma forma isso significa que não temos o apoio indígena. Temos um imenso apoio dos indígenas. Infelizmente, existe uma direção bastante intransigente, muito dura, que perdeu o rumo. Qual é seu projeto político? Não entendo. Até fazem coisas ridículas. Querem me levar à Corte Interamericana de Direitos Humanos acusar-me de genocídio, de etnocídio, de xenofobia, ou seja, de ódio aos estrangeiros, quando minha esposa é estrangeira. Têm propostas inviáveis, como mais escolas, mais hospitais, mais construção, mas não ao petróleo, não à mineração, não ao monocultivo etc. Então, como se obtém o que tanto pedem se não temos capacidade de gerar renda?

O senhor foi muito crítico com a burocracia dos órgãos internacionais de crédito. Isso pode lhe prejudicar em sua tentativa de atrair investimentos ao Equador?

Nós queremos investimentos desde que cumpram com normas éticas. O problema é pensar que todo investimento estrangeiro é bom. Há investimentos que destroem os nossos países. Também é um erro acreditar que o investimento estatal compete com o investimento privado. Todas as forças econômicas são necessárias: local e estrangeira, privada e estatal. Mas terminemos com o mito de que todo investimento estrangeiro é bom. É preciso ter regras muito claras, bons controles, senão acaba tirando mais do que dá.

Surpreendeu-lhe a rapidez com que se recompuseram as relações com a Colômbia depois da saída de Uribe do governo desse país?

É que precisamente durante dois anos Uribe disse que não ia nos dar a informação simples à qual tínhamos direito. Por exemplo, de como se realizou o bombardeio (do acampamento das FARC no Equador), porque havia sérios rumores de que um terceiro país havia participado. Por exemplo, informação sobre os supercomputadores de Reyes que sobreviveram ao bombardeio, com base nos quais fizeram toda uma campanha de desprestígio e de vinculação com as FARC. Uribe nunca cumpriu. Veio Juan Manuel (Santos), e, no mesmo dia da posse, ele me deu um disco duro com um computador supostamente de Reyes. Depois, nos entregou toda a informação do bombardeio de Angostura. Então, há uma mudança drástica na vontade de dar satisfação legítima ao Equador frente à agressão que sofreu da Colômbia. Frente a esses sinais, frente ao cumprimento dos requerimentos, sem dúvida vamos normalizar as relações bilaterais sem jamais esquecer o passado, que é o melhor para o povo. Se você se refere ao fato de que houve uma mudança radical na política exterior colombiana, isso sim é surpreendente. Santos é muito inteligente.

Depois da Colômbia, os mais prejudicados pelo conflito colombiano somos nós, os países vizinhos. As tropas na fronteiras colombiana para frear os guerrilheiros e os paramilitares nos custam mais de 100 milhões de dólares por ano, além dos mortos e feridos. É um absurdo envolver países vizinhos no conflito colombiano para ganhar popularidade em casa. Santos mudou radicalmente essa política, e, em consequência, pudemos acelerar o processo de normalização das relações bilaterais.