A indignação no mundo e o
potencial transformativo da democracia.
Os últimos dias nas ruas do Brasil foram extremamente intensos, conflituosos, antagônicos, contraditórios, e como tal, também extremamente ricos e complexos para serem analisados no calor do momento. Como diria certo pensador a mais de um século, ‘a violência sempre foi a parteira da história’, resta saber o que se está violentado, quem está sendo violentado e o mais importante, tudo isso será em nome de uma alteração substancial do status quo em um sentido progressista, ou apenas uma porta incerta aberta para um obscurantismo reacionário?
A história é rica em demonstrações constantes de lutas sociais onde as massas agem por indignação polissêmica, por uma inconformidade difusa, onde cada um conhece bem seus motivos e nem tão bem as causas. É exatamente pelo conhecimento parcial das causas que as lutas sociais estão sempre em disputa e são semantizadas, tematizadas e significadas conforme uma disputa de hegemonia sobre a realidade. Acredito que tenha sido assim, por exemplo, nas cabeças cortadas na França revolucionária e a posterior reação napoleônica, na insurgência contra o imperialismo europeu durante as conquistas, na frágil República espanhola, na República de Weimar e o posterior pesadelo fascista, e para ficar mais próximo da nossa realidade, a eleição e morte de Getúlio e a reação popular, a luta por Reformas de Base com Jango e a Marcha com Deus e o pesadelo militar.
Esse também é um movimento com muitas interpretações, muitos significados, muitas demandas ha tempos latente. Não há mais direção, não há mais pauta (ou há muitas), não enxergo a ponta do fio por onde começar a desenrolar esse emaranhado. Todo significado é válido, toda a pauta é legítima, mas todas as cordas podem formar alguma coisa? Quem for mais esperto, vai dar a forma para esta colcha de retalhos que mais lhe convier e construir a hegemonia mais rápido.
A sorte está lançada, a contenda está nas ruas, a disputa está nas ruas, o futuro ainda não está traçado.
Contexto histórico.
Resta claro que o momento não
está tão polarizado e muito menos tão violento - pelo menos no Brasil - mas
fica claro também, que cada vez é mais difícil fazer parecer ao mundo que os
conflitos que ocorrem no Brasil, na Turquia, na Espanha, na Grécia, em Nova
York, na Grã-Bretanha, etc., surgem por ‘combustão espontânea’ e que uns não
guardam relação com outros. Parece-me que há mais ai. A geopolítica mundial se
alterou substantivamente nos últimos 10 anos: a entrada da China no mercado
mundial e na OMC, a sociedade desta com os países em desenvolvimento (estes
elegendo ela como principal parceiro comercial), a transposição do parque
produtivo mundial do norte para território chinês e demais países em
desenvolvimento no sul, o endividamento crescente do norte global (chegando a
igualar a receita à dívida, fora os déficits), a sujeição destes países ao
financismo rentista dos bancos, o fim do wellfare state, etc., há muito que se
refletir sobre isso. Durante muitos anos, e principalmente após Breton Woods, o
poder econômico, militar e cultural se concentrou e foi manipulado no norte
sobre a sujeição do sul. No presente chegamos a um estado de coisas onde Europa
e os EUA consomem o equivalente a capacidade de produção de 8 planetas e o Sul
pouco mais de 1, os EUA e a OTAN tem bases militares em mais de 140 países dos quase
190 do sistema ONU, e culturalmente a ocidentalização chegou a todos os cantos
do globo. O problema é que tudo isso sem a mesma capacidade de sustento de 30
anos atrás se torna um castelo de cartas. Irá cair sobre a cabeça de quem?
Toda essa contextualização para dizer
o que exatamente? Os últimos 10 anos foram muito bons para o Estado brasileiro,
o Brasil soube usar a entrada da China no mercado mundial (assim como diversos
outros países) para se livrar das amarras que o pacto de Breton Woods impunha
aos países do antigo 3º mundo (e mesmo conquistar espaço nos organismos deste pacto),
para ampliar e diversificar o seu comércio internacional, para conquistar
superávits constantes na balança comercial e com isso colocar novamente o
Estado como indutor do crescimento (aliás, coisa que os países adiantados do
capitalismo sempre fizeram).
O Brasil passou de um PIB em 2002
de R$ 1.477.822 trilhões, para R$ 4.402.537 trilhões em 2012, e com isso
colocou o Estado para financiar todo o tipo de obra pública que nunca havia se
visto na história brasileira. Só para citar alguns dados sobre educação: foram
construídas 22 universidades novas, mais de duas centenas de escolas técnicas, saímos
de cerca de 15.000 bolsas de pesquisa em 2002 para cerca de 78.000 hoje, o
governo mandou para o exterior com bolsa de pesquisa cerca de 40.000 estudantes
pelo programa Ciência Sem Fronteiras, o Brasil alcançou nos últimos anos o 13º
lugar no ranking de produção científica (Routers), os repasses do governo
federal para os estados e munícipios para educação nunca foi tão grande, mais
de 1 milhão de estudantes pelo PROUNI, mais de 250 mil vagas pelo REUNI em
universidades federais, 600 mil nos institutos federais, muito mais professores
doutores concursados, nunca teve tanta possibilidade de educação no Brasil,
nunca! E quem quiser consulte os dados no IBGE e os relatórios da ONU. Sem citar aqui o maior número de recursos na
história para a saúde pública, para habitação, energia, agricultura, menor taxa
de desemprego da história, menor índice de miséria, menor desigualdade social
(índice de GINI). O Brasil é um dos países onde a pobreza mais diminuiu e onde o crescimento econômico dos últimos anos teve um dos maiores impactos distributivos. Não é preciso
acreditar no que está aqui escrito, basta consultar relatórios de pesquisa
nacionais e internacionais que estão à disposição do público via internet, mas
que, no entanto, não se vê muito na mídia nacional.
Não nos enganemos, o norte global
está em crise e querem exportar a crise de lá para ser paga como sempre pelos
povos daqui. E para isso podem contar, como sempre também, com muitos aliados
nativos, que sempre lucraram muito com essa parceria, alijando o resto do
Brasil que trabalha e faz ‘crescer o bolo’, mas que sempre ficou só com as
migalhas.
Os governos petistas, suas
contradições e o passo seguinte.
De nada ajuda para pautar a
agenda de transformação nacional o afastamento de fundamentais lideranças partidárias
dos movimentos sociais como vem ocorrendo em nome da administração e da
burocracia do Estado. E vejam bem, não é um problema dar a sua contribuição
institucionalmente a um projeto de transformação, o caso é que tem que ser
‘transformativo’. Administrar o Estado por si só não pode ser um fim em si
mesmo. A manutenção do status quo serve à direita não à esquerda. Não se pode
esperar e pedir que o povo trabalhador tenha paciência, enquanto vê alguns
companheiros na burocracia recebendo R$ 5.000, R$10.000, R$20.000 (isso para
falar dos companheiros éticos!) e a diminuição das desigualdades andando em
passo de tartaruga enquanto ele paga dois ônibus para chegar ao trabalho.
‘Governar é inverter prioridades como diria um certo galo do sul’.
O governo petista desde a primeira
eleição se vê imerso em conflitos e contradições permanentes. Fruto de suas
características próprias, como também da própria contradição de ser um partido que
busca democratizar a sociedade estando adaptado à ordem institucional. Como citado
anteriormente, embora com a vitória em 2002 os governos petistas tenham
conquistado diversos avanços econômicos e sociais, coube ao partido e seus
aliados de esquerda administrar um país com graves abismos sociais, tendo que
disputar palmo a palmo cada avanço não só na sociedade, no congresso, no
judiciário, como também no próprio governo pactuado com setores da política
tradicional (o famoso presidencialismo de coalizão). Ainda que tenha enfrentado
a desigualdade, o Brasil deixou de ser o 3º para ser o 8º país mais desigual do
globo, ainda somos um monumento à desigualdade, como diz o escritor Eduardo
Galeano. É fruto deste abismo que faz com que a população se levante. Esse
abismo é que sustenta a corrupção, o descaso, o jeitinho, a ignorância, os
monopólios de poder e de informação, etc., essa desigualdade é econômica, mas
também é política.
A população começa a se dar conta
destas contradições porque pela primeira vez na história do Brasil ela não
precisa mais se preocupar prioritariamente com o seu consumo de subsistência,
ela já consome - o governo fez uma política de incentivo massivo ao consumo;
ela já tem emprego - existe uma política de pleno emprego; ela já está na
universidade – nunca tantos filhos da classe trabalhadores estiveram nos bancos
das mesmas. A população está mais esclarecida, mais crítica e quer mais. O
governo petista buscou isso, incentivou isso, deve agora arcar com as consequências
e fazer o enfrentamento necessário de mudar estruturas econômicas e sociais
mais profundas da sociedade brasileira (expurgando inclusive os seus próprios
parasitas). São essas estruturas que sustentam a manutenção de um status quo que
relega à maior parte da população um papel subalterno e excluído das estruturas
de poder. O povo quer mais participação, não só institucional e política, mas
uma vida e um espaço público realmente plural e democrático social, econômica,
cultural, étnica, sexualmente...
O povo não quer só mais consumo,
o povo quer mais democracia.
Transporte Público.
A carga tributária no Brasil é
alta, não tão alta quanto dizem os conservadores (muito abaixo de vários países
europeus, por exemplo), mas ainda muito alta para o serviço oferecido em troca.
O pior da matriz tributária brasileira é que ela em sua maior parte é sobre
produção e consumo e não sobre propriedade e renda. Ela é regressiva, ou seja,
paga mais proporcionalmente quem menos tem, e como o Brasil ainda é um país
muito desigual, quem acaba por financiar o Estado brasileiro é o pobre, que é a
maior parte, e que compromete uma maior parte dos seus rendimentos com o
próprio consumo. A realidade é que a elite brasileira sempre deu um jeito de
sugar o máximo que pode o trabalhador brasileiro, seja propriamente através do salário,
seja através do parasitismo no Estado, do qual ela sempre foi a principal
beneficiária. Manipulando para isso a opinião pública, por exemplo, quando rejeita
os 15 bilhões gastos com o Bolsa Família, mas escamoteia os mais de 1 trilhão
gastos com juros e amortização da dívida pública, a qual os banqueiros
infiltrados no Banco Central sempre dão um jeito de manipular. É isso que
garante a manutenção do seu poder econômico e por consequência do poder
político.
O caso do transporte no Brasil caminha
nesse sentido, é ha muito tempo um caso de ineficiência, descaso e exploração
fora de qualquer parâmetro. Desde quando se substituiu todos os outros modais
de transporte por uma única e quase que exclusiva via, a de rolagem asfáltica
(diga-se de passagem, por pressão das 7 irmãs do petróleo e pela indústria
automobilística), o país perdeu muito de sua autonomia econômica e de
mobilidade interna. O transporte público é ainda mais caótico, poucas cidades
contam com trens e metrôs, mas todas tem algum tipo de transporte urbano em
ônibus. Essas linhas de transporte urbano em sua maioria, pasmem, não tem licitação,
tudo é feito por contrato de concessão, onde, claro, há certas obrigações de bom
atendimento, mas que em geral não são cumpridas ao bom gosto do usuário. O
preço das passagens é um caso pior ainda, pois como não há licitação, não há
concorrência pelo melhor preço, e mais, não se sabe nada sobre as planilhas de
custos, a manutenção, os lucros e a necessidade dos subsídios dos governos para
as empresas.
A pauta de um movimento
relacionada ao transporte público poderia ser muito bem pelas licitações em
todo país. O caso é que serviços públicos precisam atender aos interesses,
vejam só: públicos. O que não vem acontecendo não só nas metrópoles como em várias
partes do Brasil. É preciso entender que o transporte público é utilizado
direta ou indiretamente por toda a sociedade e, portanto, não pode ser
simplesmente pago por quem precisa, deve ser financiado por toda ela. E aqui
entra a questão dos impostos de novo, não é preciso criar um novo imposto para
financiar o passe livre, o que é preciso é discutir a matriz tributária
brasileira. Pois assim como o trabalhador precisa chegar ao trabalho, o
empresário precisa que o trabalhador chegue ao trabalho para produzir os bens e
serviços que fazem a sua riqueza.
A licitação é o atalho, mas o
passe livre é o que pode colocar o debate nos termos adequados.
Novos movimentos, espontaneismo e transformação.
Essa primeira década do século
XXI nos mostrou que vários paradigmas foram rompidos, que certas leituras
explicativas da realidade não mais dão conta da maneira multifacetada e
complexa como ela se apresenta. Foram publicados há algum tempo dois artigos
extremamente interessantes um escrito pelo linguista norte americano Noam
Chomsky, e outro pelo sociólogo, também norte americano, Immanuel Wallerstein.
Os dois se debruçavam sobre a análise do fenômeno Occupy Wall Street, nas duas interpretações
do movimento os analistas verificaram uma multiplicidade e polissemia de
significados quanto ao porque protestar e uma negação por parte dos
manifestantes em apresentar uma pauta específica e pontual de reivindicação. A
partir do ponto de vista aqui apresentado, não é simplesmente o caso de não se
conseguir apresentar uma pauta: a pauta é tudo que está lá; ela não é
pragmática: é normativa; ela não é fruto de demandas setoriais que se constroem
no coletivo e se uniformizam para a ação: ela parte da inconformidade
individual que encontra eco em outras individualidades, passando por cima das
‘identidades coletivas’ mais tradicionais.
Sem dúvida o chamado ‘fim da
história’, o fim do socialismo real e a vitória do capitalismo de cariz liberal
mostrou sua face em todos os cantos do planeta. Na prática econômica,
capitalista estatal/privado e no discurso cultural individualista-liberal, duas
faces da mesma moeda. O capitalismo se estendeu a todo o globo sendo
implementado por diferentes atores, conservadores e progressistas, e sempre com
as ‘luvas’ do Estado manipulando a tal ‘mão invisível’, mas nunca integralmente
liberal na economia (até porque, o mundo não sobreviveria a uma semana de real
laissez faire). O que se fortaleceu nestes últimos 20 anos foi uma cultura
liberal, atomista e individualista: a negação/rejeição das causas coletivas
construídas e partilhadas no consenso e no acordo, a negação/rejeição das
grandes narrativas de transformação social, a negação/rejeição da participação
política organizativa e mesmo da representação política convencional.
Esses novos movimentos sociais do
século XXI são fruto desse paradigma econômico/cultural ‘vitorioso’: do
fracionamento do mundo do trabalho, do enfraquecimento de sindicatos, partidos
e movimentos sociais mais tradicionais, da democracia apenas como procedimento
institucional e não como ação substantiva de controle e participação. Mas mais
do que tudo, da vitória de um projeto cultural, que se manifesta nos nossos
tempos como uma pulverização da inconformidade com as promessas não cumpridas
da modernidade de liberdade e igualdade, e o mais crítico, sem a capacidade de
produzir consensos progressivos que instrumentalizem à mudança.
Com a expansão hegemônica do
capitalismo econômico e do liberalismo cultural, os seus principais
antagonistas, perderam não só o terreno na geopolítica do poder, como também,
não conseguem fazer uma leitura apropriada da conjuntura e dos novos movimentos
sociais atomizados. Se utilizando na maioria das vezes de modelos ultrapassados
ou buscando retroceder o relógio da realidade para adaptar esta a modelos
compreensíveis de ação de maneira anti-dialética. As organizações que se
pretendem alternativas a esse modelo precisam urgentemente compreender a
multiplicidade e a complexidade das sociedades atuais reais formadas
culturalmente no modelo liberal.
Nesse sentido, é importante reconhecer que o liberalismo em sua origem é um
projeto de ruptura e rejeição dos valores conservadores, assim como o são as
vertentes comunitaristas, socialistas e comunistas de esquerda. É filho da
Modernidade, assim como o são essas vertentes, procura a partir da sua
perspectiva, implementar as promessas até agora não cumpridas da Modernidade. Ciente
disto é que qualquer antagonista do projeto liberal deve elaborar sua reflexão,
demonstrar as contradições do projeto em fazer cumprir essas promessas, apresentar
para a sociedade uma alternativa contando para isso com as próprias
contradições do ideário liberal que se fazem sentir atomizadas como
insatisfação difusa na sociedade.
E isso pode se tornar factível
enunciando-se a partir dos espaços de poder conquistados (institucionais ou
não) mudanças substanciais e estruturais, que organizem essa indignação difusa,
identificando e criando eixos de ação transformativos. Para tanto, o passo inicial
nesta perspectiva seria ampliar a participação e a inclusão política social,
pois é exatamente com o aprofundamento da democracia (ora, não é nela que todos
valem a mesma coisa) que irão aflorar a ineficiência e os limites do
liberalismo, e quem sabe, do próprio capitalismo.