terça-feira, 18 de junho de 2013



A indignação no mundo e o potencial transformativo da democracia.

Os últimos dias nas ruas do Brasil foram extremamente intensos, conflituosos, antagônicos, contraditórios, e como tal, também extremamente ricos e complexos para serem analisados no calor do momento. Como diria certo pensador a mais de um século, ‘a violência sempre foi a parteira da história’, resta saber o que se está violentado, quem está sendo violentado e o mais importante, tudo isso será em nome de uma alteração substancial do status quo em um sentido progressista, ou apenas uma porta incerta aberta para um obscurantismo reacionário?

A história é rica em demonstrações constantes de lutas sociais onde as massas agem por indignação polissêmica, por uma inconformidade difusa, onde cada um conhece bem seus motivos e nem tão bem as causas. É exatamente pelo conhecimento parcial das causas que as lutas sociais estão sempre em disputa e são semantizadas, tematizadas e significadas conforme uma disputa de hegemonia sobre a realidade. Acredito que tenha sido assim, por exemplo, nas cabeças cortadas na França revolucionária e a posterior reação napoleônica, na insurgência contra o imperialismo europeu durante as conquistas, na frágil República espanhola, na República de Weimar e o posterior pesadelo fascista, e para ficar mais próximo da nossa realidade, a eleição e morte de Getúlio e a reação popular, a luta por Reformas de Base com Jango e a Marcha com Deus e o pesadelo militar. 


Esse também é um movimento com muitas interpretações, muitos significados, muitas demandas ha tempos latente. Não há mais direção, não há mais pauta (ou há muitas), não enxergo a ponta do fio por onde começar a desenrolar esse emaranhado. Todo significado é válido, toda a pauta é legítima, mas todas as cordas podem formar alguma coisa? Quem for mais esperto, vai dar a forma para esta colcha de retalhos que mais lhe convier e construir a hegemonia mais rápido.

A sorte está lançada, a contenda está nas ruas, a disputa está nas ruas, o futuro ainda não está traçado.


Contexto histórico.

Resta claro que o momento não está tão polarizado e muito menos tão violento - pelo menos no Brasil - mas fica claro também, que cada vez é mais difícil fazer parecer ao mundo que os conflitos que ocorrem no Brasil, na Turquia, na Espanha, na Grécia, em Nova York, na Grã-Bretanha, etc., surgem por ‘combustão espontânea’ e que uns não guardam relação com outros. Parece-me que há mais ai. A geopolítica mundial se alterou substantivamente nos últimos 10 anos: a entrada da China no mercado mundial e na OMC, a sociedade desta com os países em desenvolvimento (estes elegendo ela como principal parceiro comercial), a transposição do parque produtivo mundial do norte para território chinês e demais países em desenvolvimento no sul, o endividamento crescente do norte global (chegando a igualar a receita à dívida, fora os déficits), a sujeição destes países ao financismo rentista dos bancos, o fim do wellfare state, etc., há muito que se refletir sobre isso. Durante muitos anos, e principalmente após Breton Woods, o poder econômico, militar e cultural se concentrou e foi manipulado no norte sobre a sujeição do sul. No presente chegamos a um estado de coisas onde Europa e os EUA consomem o equivalente a capacidade de produção de 8 planetas e o Sul pouco mais de 1, os EUA e a OTAN tem bases militares em mais de 140 países dos quase 190 do sistema ONU, e culturalmente a ocidentalização chegou a todos os cantos do globo. O problema é que tudo isso sem a mesma capacidade de sustento de 30 anos atrás se torna um castelo de cartas. Irá cair sobre a cabeça de quem?

Toda essa contextualização para dizer o que exatamente? Os últimos 10 anos foram muito bons para o Estado brasileiro, o Brasil soube usar a entrada da China no mercado mundial (assim como diversos outros países) para se livrar das amarras que o pacto de Breton Woods impunha aos países do antigo 3º mundo (e mesmo conquistar espaço nos organismos deste pacto), para ampliar e diversificar o seu comércio internacional, para conquistar superávits constantes na balança comercial e com isso colocar novamente o Estado como indutor do crescimento (aliás, coisa que os países adiantados do capitalismo sempre fizeram).

O Brasil passou de um PIB em 2002 de R$ 1.477.822 trilhões, para R$ 4.402.537 trilhões em 2012, e com isso colocou o Estado para financiar todo o tipo de obra pública que nunca havia se visto na história brasileira. Só para citar alguns dados sobre educação: foram construídas 22 universidades novas, mais de duas centenas de escolas técnicas, saímos de cerca de 15.000 bolsas de pesquisa em 2002 para cerca de 78.000 hoje, o governo mandou para o exterior com bolsa de pesquisa cerca de 40.000 estudantes pelo programa Ciência Sem Fronteiras, o Brasil alcançou nos últimos anos o 13º lugar no ranking de produção científica (Routers), os repasses do governo federal para os estados e munícipios para educação nunca foi tão grande, mais de 1 milhão de estudantes pelo PROUNI, mais de 250 mil vagas pelo REUNI em universidades federais, 600 mil nos institutos federais, muito mais professores doutores concursados, nunca teve tanta possibilidade de educação no Brasil, nunca! E quem quiser consulte os dados no IBGE e os relatórios da ONU.  Sem citar aqui o maior número de recursos na história para a saúde pública, para habitação, energia, agricultura, menor taxa de desemprego da história, menor índice de miséria, menor desigualdade social (índice de GINI). O Brasil é um dos países onde a pobreza mais diminuiu e onde o crescimento econômico dos últimos anos teve um dos maiores impactos distributivos. Não é preciso acreditar no que está aqui escrito, basta consultar relatórios de pesquisa nacionais e internacionais que estão à disposição do público via internet, mas que, no entanto, não se vê muito na mídia nacional.

Não nos enganemos, o norte global está em crise e querem exportar a crise de lá para ser paga como sempre pelos povos daqui. E para isso podem contar, como sempre também, com muitos aliados nativos, que sempre lucraram muito com essa parceria, alijando o resto do Brasil que trabalha e faz ‘crescer o bolo’, mas que sempre ficou só com as migalhas.



Os governos petistas, suas contradições e o passo seguinte.

De nada ajuda para pautar a agenda de transformação nacional o afastamento de fundamentais lideranças partidárias dos movimentos sociais como vem ocorrendo em nome da administração e da burocracia do Estado. E vejam bem, não é um problema dar a sua contribuição institucionalmente a um projeto de transformação, o caso é que tem que ser ‘transformativo’. Administrar o Estado por si só não pode ser um fim em si mesmo. A manutenção do status quo serve à direita não à esquerda. Não se pode esperar e pedir que o povo trabalhador tenha paciência, enquanto vê alguns companheiros na burocracia recebendo R$ 5.000, R$10.000, R$20.000 (isso para falar dos companheiros éticos!) e a diminuição das desigualdades andando em passo de tartaruga enquanto ele paga dois ônibus para chegar ao trabalho. ‘Governar é inverter prioridades como diria um certo galo do sul’.

O governo petista desde a primeira eleição se vê imerso em conflitos e contradições permanentes. Fruto de suas características próprias, como também da própria contradição de ser um partido que busca democratizar a sociedade estando adaptado à ordem institucional. Como citado anteriormente, embora com a vitória em 2002 os governos petistas tenham conquistado diversos avanços econômicos e sociais, coube ao partido e seus aliados de esquerda administrar um país com graves abismos sociais, tendo que disputar palmo a palmo cada avanço não só na sociedade, no congresso, no judiciário, como também no próprio governo pactuado com setores da política tradicional (o famoso presidencialismo de coalizão). Ainda que tenha enfrentado a desigualdade, o Brasil deixou de ser o 3º para ser o 8º país mais desigual do globo, ainda somos um monumento à desigualdade, como diz o escritor Eduardo Galeano. É fruto deste abismo que faz com que a população se levante. Esse abismo é que sustenta a corrupção, o descaso, o jeitinho, a ignorância, os monopólios de poder e de informação, etc., essa desigualdade é econômica, mas também é política.

A população começa a se dar conta destas contradições porque pela primeira vez na história do Brasil ela não precisa mais se preocupar prioritariamente com o seu consumo de subsistência, ela já consome - o governo fez uma política de incentivo massivo ao consumo; ela já tem emprego - existe uma política de pleno emprego; ela já está na universidade – nunca tantos filhos da classe trabalhadores estiveram nos bancos das mesmas. A população está mais esclarecida, mais crítica e quer mais. O governo petista buscou isso, incentivou isso, deve agora arcar com as consequências e fazer o enfrentamento necessário de mudar estruturas econômicas e sociais mais profundas da sociedade brasileira (expurgando inclusive os seus próprios parasitas). São essas estruturas que sustentam a manutenção de um status quo que relega à maior parte da população um papel subalterno e excluído das estruturas de poder. O povo quer mais participação, não só institucional e política, mas uma vida e um espaço público realmente plural e democrático social, econômica, cultural, étnica, sexualmente...

O povo não quer só mais consumo, o povo quer mais democracia.



Transporte Público.

A carga tributária no Brasil é alta, não tão alta quanto dizem os conservadores (muito abaixo de vários países europeus, por exemplo), mas ainda muito alta para o serviço oferecido em troca. O pior da matriz tributária brasileira é que ela em sua maior parte é sobre produção e consumo e não sobre propriedade e renda. Ela é regressiva, ou seja, paga mais proporcionalmente quem menos tem, e como o Brasil ainda é um país muito desigual, quem acaba por financiar o Estado brasileiro é o pobre, que é a maior parte, e que compromete uma maior parte dos seus rendimentos com o próprio consumo. A realidade é que a elite brasileira sempre deu um jeito de sugar o máximo que pode o trabalhador brasileiro, seja propriamente através do salário, seja através do parasitismo no Estado, do qual ela sempre foi a principal beneficiária. Manipulando para isso a opinião pública, por exemplo, quando rejeita os 15 bilhões gastos com o Bolsa Família, mas escamoteia os mais de 1 trilhão gastos com juros e amortização da dívida pública, a qual os banqueiros infiltrados no Banco Central sempre dão um jeito de manipular. É isso que garante a manutenção do seu poder econômico e por consequência do poder político.

O caso do transporte no Brasil caminha nesse sentido, é ha muito tempo um caso de ineficiência, descaso e exploração fora de qualquer parâmetro. Desde quando se substituiu todos os outros modais de transporte por uma única e quase que exclusiva via, a de rolagem asfáltica (diga-se de passagem, por pressão das 7 irmãs do petróleo e pela indústria automobilística), o país perdeu muito de sua autonomia econômica e de mobilidade interna. O transporte público é ainda mais caótico, poucas cidades contam com trens e metrôs, mas todas tem algum tipo de transporte urbano em ônibus. Essas linhas de transporte urbano em sua maioria, pasmem, não tem licitação, tudo é feito por contrato de concessão, onde, claro, há certas obrigações de bom atendimento, mas que em geral não são cumpridas ao bom gosto do usuário. O preço das passagens é um caso pior ainda, pois como não há licitação, não há concorrência pelo melhor preço, e mais, não se sabe nada sobre as planilhas de custos, a manutenção, os lucros e a necessidade dos subsídios dos governos para as empresas.  

A pauta de um movimento relacionada ao transporte público poderia ser muito bem pelas licitações em todo país. O caso é que serviços públicos precisam atender aos interesses, vejam só: públicos. O que não vem acontecendo não só nas metrópoles como em várias partes do Brasil. É preciso entender que o transporte público é utilizado direta ou indiretamente por toda a sociedade e, portanto, não pode ser simplesmente pago por quem precisa, deve ser financiado por toda ela. E aqui entra a questão dos impostos de novo, não é preciso criar um novo imposto para financiar o passe livre, o que é preciso é discutir a matriz tributária brasileira. Pois assim como o trabalhador precisa chegar ao trabalho, o empresário precisa que o trabalhador chegue ao trabalho para produzir os bens e serviços que fazem a sua riqueza.

A licitação é o atalho, mas o passe livre é o que pode colocar o debate nos termos adequados.



Novos movimentos, espontaneismo e transformação.

Essa primeira década do século XXI nos mostrou que vários paradigmas foram rompidos, que certas leituras explicativas da realidade não mais dão conta da maneira multifacetada e complexa como ela se apresenta. Foram publicados há algum tempo dois artigos extremamente interessantes um escrito pelo linguista norte americano Noam Chomsky, e outro pelo sociólogo, também norte americano, Immanuel Wallerstein. Os dois se debruçavam sobre a análise do fenômeno Occupy Wall Street, nas duas interpretações do movimento os analistas verificaram uma multiplicidade e polissemia de significados quanto ao porque protestar e uma negação por parte dos manifestantes em apresentar uma pauta específica e pontual de reivindicação. A partir do ponto de vista aqui apresentado, não é simplesmente o caso de não se conseguir apresentar uma pauta: a pauta é tudo que está lá; ela não é pragmática: é normativa; ela não é fruto de demandas setoriais que se constroem no coletivo e se uniformizam para a ação: ela parte da inconformidade individual que encontra eco em outras individualidades, passando por cima das ‘identidades coletivas’ mais tradicionais.

Sem dúvida o chamado ‘fim da história’, o fim do socialismo real e a vitória do capitalismo de cariz liberal mostrou sua face em todos os cantos do planeta. Na prática econômica, capitalista estatal/privado e no discurso cultural individualista-liberal, duas faces da mesma moeda. O capitalismo se estendeu a todo o globo sendo implementado por diferentes atores, conservadores e progressistas, e sempre com as ‘luvas’ do Estado manipulando a tal ‘mão invisível’, mas nunca integralmente liberal na economia (até porque, o mundo não sobreviveria a uma semana de real laissez faire). O que se fortaleceu nestes últimos 20 anos foi uma cultura liberal, atomista e individualista: a negação/rejeição das causas coletivas construídas e partilhadas no consenso e no acordo, a negação/rejeição das grandes narrativas de transformação social, a negação/rejeição da participação política organizativa e mesmo da representação política convencional.

Esses novos movimentos sociais do século XXI são fruto desse paradigma econômico/cultural ‘vitorioso’: do fracionamento do mundo do trabalho, do enfraquecimento de sindicatos, partidos e movimentos sociais mais tradicionais, da democracia apenas como procedimento institucional e não como ação substantiva de controle e participação. Mas mais do que tudo, da vitória de um projeto cultural, que se manifesta nos nossos tempos como uma pulverização da inconformidade com as promessas não cumpridas da modernidade de liberdade e igualdade, e o mais crítico, sem a capacidade de produzir consensos progressivos que instrumentalizem à mudança.

Com a expansão hegemônica do capitalismo econômico e do liberalismo cultural, os seus principais antagonistas, perderam não só o terreno na geopolítica do poder, como também, não conseguem fazer uma leitura apropriada da conjuntura e dos novos movimentos sociais atomizados. Se utilizando na maioria das vezes de modelos ultrapassados ou buscando retroceder o relógio da realidade para adaptar esta a modelos compreensíveis de ação de maneira anti-dialética. As organizações que se pretendem alternativas a esse modelo precisam urgentemente compreender a multiplicidade e a complexidade das sociedades atuais reais formadas culturalmente no modelo liberal.
 
Nesse sentido, é importante reconhecer que o liberalismo em sua origem é um projeto de ruptura e rejeição dos valores conservadores, assim como o são as vertentes comunitaristas, socialistas e comunistas de esquerda. É filho da Modernidade, assim como o são essas vertentes, procura a partir da sua perspectiva, implementar as promessas até agora não cumpridas da Modernidade. Ciente disto é que qualquer antagonista do projeto liberal deve elaborar sua reflexão, demonstrar as contradições do projeto em fazer cumprir essas promessas, apresentar para a sociedade uma alternativa contando para isso com as próprias contradições do ideário liberal que se fazem sentir atomizadas como insatisfação difusa na sociedade.
E isso pode se tornar factível enunciando-se a partir dos espaços de poder conquistados (institucionais ou não) mudanças substanciais e estruturais, que organizem essa indignação difusa, identificando e criando eixos de ação transformativos. Para tanto, o passo inicial nesta perspectiva seria ampliar a participação e a inclusão política social, pois é exatamente com o aprofundamento da democracia (ora, não é nela que todos valem a mesma coisa) que irão aflorar a ineficiência e os limites do liberalismo, e quem sabe, do próprio capitalismo.