Marina e as elites
Muitas pessoas ficaram surpresas
com a declaração de Marina Silva no primeiro debate entre os presidenciáveis na
Rede Bandeirantes sobre as elites: a comparação entre Maria Alice Setúbal (a
Neca) e Guilherme Leal com Chico Mendes, dizendo que este último também seria
da elite e, com a afirmação de que o Brasil precisaria de mais elites. Um debate
mais profundo até foi travado entre cientistas políticos sobre o enunciado, a
terminologia e a corrente epistemológica a que faz referência nesta área acadêmica.
O debate dizia respeito à vinculação da fala da candidata à Teoria das Elites, corrente teórica e escola de investigação muito relevante na Ciência Política (em muitos ambientes hegemônica) e nas Ciências Sociais de maneira geral. Essa corrente teórica preconiza, em linhas gerais, que a vida pública é comandada por elites políticas representativas de determinados grupos sociais. Segundo essa tradição teórica (que vem desde Mosca, Pareto e Mischels), essas elites cumprem, ao mesmo tempo, o papel de exercer a liderança em seu grupo de origem e ser seu representante no âmbito mais geral da sociedade.
Nesse sentido, Marina Silva estaria então comparando e dizendo que Chico Mendes como líder sindical e Guilherme Leal (dono da Natura, grande empresário e seu vice em 2010), assim como, Maria Alice Setúbal (herdeira e acionista do Banco Itaú), seriam elites, diferentes elites, mas elites que influenciariam a vida política nacional como representantes de seus grupos sociais de origem. Não discordo da análise, não há problema nessa explicação teórica e, em minha opinião, procede à percepção daqueles que enxergam em Marina Silva essa linha de raciocínio.
Gostaria apenas de fazer duas considerações sobre esse debate, uma de caráter analítica sobre a teoria e outra de caráter prático/normativo sobre a postura de Marina.
Em primeiro lugar, entendo que a Teoria das Elites, como campo analítico de estudo da Ciência Política para a democracia liberal (constituída esta pela representação legal e indireta) uma excelente ferramenta de investigação, descrição e interpretação da realidade objetiva na maior parte dos casos. Contudo, tenho cá minhas discordâncias quanto a este modelo teórico. Minha inconformidade parte de algumas singelas e, talvez, ‘ultrapassadas’ indagações:
1º será que as digamos, ‘elites econômicas’ e as digamos, ‘elites populares’, exercem influências equivalentes em escala e natureza na vida pública?;
2º/1 será que a democracia liberal, como se conhece nos países ocidentais, em especial nos países Europeus, tem a mesma lógica de justiça (analisada por liberais como Hawls e Habermas, por exemplo) no contexto latinoamericano e brasileiro em particular?
2º/2 será que esta lógica relacional de alteridade social e política é/está bem adaptada à nossa realidade?
2º/3 será que queremos incorporar integralmente e somente esta ‘receita de bolo’, formulada no contexto europeu de disputa entre liberais X conservadores, à nossa vida pública?;
3º será que em um país com desigualdades sociais e econômicas anacrônicas e estruturais (ver índice de GINI do Banco Mundial) é possível 'equalizar' elites em sua capacidade de intervenção na vida pública?
Em segundo lugar, seguindo o
raciocínio acima, o que Marina Silva então parece estar querendo dizer com ‘o
Brasil precisa de mais elites’ é exatamente o pressuposto da Teoria das Elites
e, o reforço da ideia liberal de que ‘os melhores’ exercem a liderança e devem
governar a vida pública. Assim, partindo
da prescrição ‘marineira’ de que precisamos de mais elites, questiono: será que
é possível, ou mesmo desejável, ter somente e reforçar apenas o modelo de
democracia representativa baseado em elites políticas? Em um país como o
Brasil, tão desigual como dito mais acima, quais das elites governarão ou
continuarão a governar? Essas elites, que deterão o monopólio da
representação política, serão permeáveis ou refratárias a, pelo menos, uma
maior inclusão social e cidadã?
Acredito, em medida complementar,
que é preciso pensar o processo democrático para além do mero procedimento bianual
de escolha de líderes já estabelecido, é preciso refletir para além da
democracia ‘realmente existente’ e institucionalizada pela Constituição Federal de 1988. Já é hora de
refletirmos sistematicamente sobre os ‘vazios’ democráticos que esse modelo de
representação nos relega e interrogar como superar esses vácuos e a tão propalada
‘crise de representação’. Conjecturando, de maneira a acrescer, a possibilidade
de uma democracia de maior intensidade e substância, maior participação e
envolvimento social e que confira, por consequência, maior legitimidade a todo
sistema representativo.
Sem essa perspectiva, a ‘nova
política’ é só uma miragem sem conteúdo (na verdade conservadora do status quo
político), um palavrório moralizante sem efeito, uma cantilena já ouvida e
requentada nesta eleição, uma vez mais.
Rafael Cesar Ilha Pinto
Doutorando em Ciência Política e editor deste Blog